Miyazaki e como foi aberta uma fresta para que a realidade invadisse a fantasia



Conheci Hayao Miyazaki através de A Viagem de Chihiro, quando o filme foi indicado ao Oscar de melhor animação, lá no começo dos anos 2000. Um dos (poucos?) acertos da Academia, que acabou apresentando ao mainstream do Ocidente a genialidade do mestre. Corri para conferir a obra, em parte pelo fato de eu ser então um projeto de adolescente cinéfila e em parte arrastada pela curiosidade de ver um anime num espaço tão nobre para o cinema. E foi uma imersão diferente, cheia de fantasia, mas sobretudo de amor às miudezas e de beleza no que às vezes nem era dito, mas vivido e compartilhado. Me apaixonei.

Fui vendo as outras obras do Studio Ghibli e, sempre que podia, ia espalhando a palavra do Miyazaki. Antes de maratonar os filmes com meu próprio filho, muitos anos mais tarde, o fiz com os filhos das minhas primas mais velhas e com qualquer criança desavisada que passasse lá por casa. Eu tinha um DVDzinho original de Chihiro comprado nas Americanas que eu rodava no meu aparelhinho de DVD e que permitia que a mágica acontecesse incontáveis vezes. Sem falar no CD pirata com a trilha do Joe Hisaishi que eu escutava no meu micro system até furar a mídia e precisar regravar.

Chihiro era e ainda é meu filme favorito do Ghibli (e um dos favoritos da vida), embora eu também ame muitas outras obras do estúdio. Totoro, Túmulo dos Vagalumes, Princesa Mononoke, Serviço de Entregas da Kiki... e meu segundo mais amado: O Castelo Animado, de 2004. Foi meu amor por Howl e O Castelo Animado que recentemente me levou ao livro que deu origem ao filme e que sem querer me despertou um desconforto onde até então só existia afeto.

Sou uma mulher negra, ainda que de pele clara. Tristemente, essa vivência como parda muitas vezes despertou gatilhos em coisas que eu curtia. Até então, esse não tinha sido o caso com o Studio Ghibli. Miyazaki era refúgio de calma, magia e contemplação. Nunca havia problematizado muito a ausência de personagens negros nos filmes. Achava até de boa que os fenótipos retratados fossem mais parecidos com a maioria amarela japonesa.

De uns anos para cá, tenho lido muita coisa sobre o enorme racismo, principalmente contra os negros, na sociedade japonesa. Foi triste ler O Castelo Animado e perceber que tinham não apenas um, mas pelo menos três personagens negros que ou foram embranquecidos ou cortados na adaptação de Miyazaki. O pior caso é o de Michael (ou Markl), que de negro virou simplesmente RUIVO!!!

Hoje em dia eu não tento justificar o injustificável apenas por ser fã. Se o autor faz merda, é merda mesmo e ponto (alô, J.K., sua transfóbica! Alô, Tim Burton, também dá pra ser gótico sendo negro!). E foi assim quando comecei a ler os mangás de Sakura Card Captors, do CLAMP, e reparei que, apesar de toda a carga nostálgica pela minha relação com o anime desde novinha e de terem sido escritos por um coletivo de mulheres que tão bem representou alguns temas para a época de sua publicação, como a questão LGBT, ainda assim carregavam falhas grotescas, como a romantização de relacionamentos entre crianças e adultos. Não passo pano, não tem como.

Tanto em Sakura quanto em Miyazaki está nitidamente registrada a mão pesada da problemática sociedade japonesa, com sua enorme tolerância para a pedofilia e racismo escancarado. Mas não fecho com determinismo. Do jeito que Miyazaki nadou contra a maré para construir uma obra que foge do modelo mercadológico da indústria cultural do Japão e para isso criou até o seu próprio estúdio, ele poderia também ter rompido com a lógica racista em suas obras. E não tou nem pedindo uma Chihiro negra, mas somente um Markl, um personagem secundário, que tivesse a cor com que foi descrito por Diana Wynne Jones em seu livro.

É triste que, justo no que mais me dá mais imersão na fantasia, tenha surgido essa fresta de dura realidade. Nada é mesmo perfeito nesse mundo de merda. De qualquer forma, a obra do mestre estará sempre comigo, pois já faz parte de mim. E isso nem só no figurado, mas também no literal, já que, sem arrependimentos, meu peito negro está tatuado com Chihiro, Haku e seu eterno amor.




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