Imergindo na Cantiga dos Pássaros e das Serpentes



Ninguém é inteiramente mal, nem mesmo os maiores vilões. Essa é a primeira coisa que a gente apreende de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes. Eu fui ao cinema já conhecendo o que se tornaria Coriolanus Snow, mas ainda assim torci por ele e até pelo seu relacionamento com Lucy Gray, tadinha. Pior, eu fui ler o livro pouco depois de ter visto o filme, repeti e ainda intensifiquei esse comportamento, além de ter chorado litros vendo o lado sombrio de Coryo sobrepor aos poucos seus aspectos mais positivos. Esse é o poder de uma história bem escrita!

Coriolanus tem mais facetas além de sua maldade: orfão desde muito novinho, estudioso, criativo, tem uma prima que ama e uma avó de quem quer cuidar. Por isso é tão perigoso retratar criminosos reais nas artes, seja em livros, séries ou filmes. Como os criminosos são pessoas, e naturalmente pessoas são compostas de luz, trevas e penumbra, há um risco real de humanizar o vilão do mundo real e acabar despertando a empatia das pessoas com essas figuras cruéis, o que não é nada educativo. Claro que a humanidade do criminoso não o isenta da crueldade cometida no crime, mas nem todo mundo está preparado para entender isso. Por isso, obras como a série Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story foram tão criticadas, pois transitam na corda bamba entre apenas retratar a vida do criminoso e romantizar um cara que tanta dor trouxe às vítimas e suas famílias. Afinal, até Hitler teve alguma vida além de todos os crimes cometidos contra a humanidade (o que não muda o fato de que ele é Hitler...). De qualquer forma, ainda bem que Coriolanus é ficcional, ufa!

O mestre do suspense, Hitchcock, defendia que para construir um bom vilão temos que nos livrar do maniqueísmo simplista e construir personagens com várias camadas de profundidade, com elementos que causem repulsa e ao mesmo tempo com aspectos que atraiam o espectador. Assim, o público chega a se identificar com o vilão, despertando sentimentos ambíguos. Essa complexidade geraria uma tensão psicológica na audiência, capaz de alimentar o suspense da narrativa. Nas palavras do mestre, “vilões não são todos pretos, e heróis não são todos brancos; há cinzas em todos os lugares”. E isso é o puro suco de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, com o adicional de que, além de vilão, Snow é também o protagonista da história. A tensão gerada aí nos faz engolir o livro. Eu mal parava pra respirar, haha.

Além da oportunidade que deu aos fãs de poder conhecer os meandros do vilão da saga, com este livro, a autora, Suzanne Collins, torna o conjunto de sua obra, que já tinha bastante qualidade, ainda mais complexo. Ela acrescenta ao universo de Panem as camadas necessárias para elevar exponencialmente  a imersão do espectador também nas demais publicações. De quebra, acompanhamos como foram arquitetados os jogos e até lemos (ou ouvimos, por que a cantiga salta das páginas) a origem de The Hanging Tree.

Para finalizar, nada mais simbólico do que, ao final do livro, Coryo entrando no lago com os bolsos cheios das lembranças que ele levaria para o norte. Entre fotos e outras recordações, estavam o pó de rosas de sua mãe e a bússola de seu pai, mergulhados junto com ele. O pó de sua mãe, que representa a parte dele que envolvia mais afeto, havia dissolvido e foi jogado fora; a bússola de seu pai, que é quem inspirava seu lado mais cruel, estava inteira e intacta e o guiou de volta até a base militar e consequentemente à Capital. Ali quase já não havia mais Coryo, mas cada vez mais Coriolanus Snow, o fascista que Katniss veio a enfrentar anos depois. E nós o odiamos, mesmo com todos os sentimentos conflituosos que isso carregue.



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