"Ginny e Georgia" e suas convergências com minha passabildade parda

Quando assisti "Ginny e Georgia", da Netflix, me identifiquei de tal maneira com a personagem da Ginny que fiquei refletindo nos porquês. E achei convergências, apesar da trama agitada divergir em muita coisa da minha vidinha quase sempre monótona.

O que poderia existir que me fizesse enxergar a Lu naquela personagem teen estadunidense? Para além das escolhas amorosas da Ginny, que também se assemelharam demais com meus primeiros contatos nessa área - nossa, até o jeito com que ela inicia sua vida sexual foi parecido com meu, haha - existe na Ginny o forte elemento da identidade racial que reproduz muito a minha experiência.


A Ginny é filha de um relacionamento birracial. Geralmente não se enxerga nas amigas da escola, que são brancas. Embora viva momentos frequentes de racismo, esses episódios são menos violentos do que seriam para um negro de pele escura. Foi assim quando resolveu fazer um penteado na escola e a cabeleireira passou a escova no cabelo seco dela, desarranjando os cachos - nossa, quantas vezes vivi isso! Quantas vezes uma amiga tentou pentear ou trançar o meu cabelo como se estivesse lidando com uma cabeleira lisa até eu aprender que ninguém podia tocar na minha cabeça além de mim? O desfecho dessa cena é a Ginny enfiando o cabelo na pia do banheiro da escola para tentar rearranjar os cachos: por Deus, era minha cara tentar reorganizar as coisas usando água, o que nunca dava exatamente certo.

E quando a Ginny, pra tentar se entrosar melhor, começa a andar de cabelo alisado? Ela escutou o que inúmeras vezes eu ouvi depois de escovar e pranchar o cabelo: "nossa, assim você fica aceitável".

É justo essa possibilidade de ficar "aceitável" depois de uma escova que me identificou ainda mais com a personagem. É o que o movimento hoje chama de passabilidade, algo que os mestiços tem. Pela pele clara e alguns dos traços mais finos, o mestiço tem a possibilidade de acessar espaços que um negro de pele escura não teria.


É importante não confundir essa passabilidade com privilégio branco. Apesar de ter mais acessos, o mestiço, ou pardo negro, continua a sofrer racismo, mesmo em grau diferente. Isso fica bem negritado na cena em que a Ginny está no auge da entrosação com seu grupinho da escola. As meninas todas se fantasiam de Britney Spears, e a Ginny se veste como a jovem Britney de "Baby One More Time": peruca loira, dois coquinhos, roupitcha colegial.

Ao encontrar na festa com a única outra colega negra da escola, uma negra de pele escura, uma tensão se forma. Uma das coisas que as unia era uma certa identificação racial. Ao ver a Ginny de peruca loira, performando quase como uma branca, a colega negra retinta diz à Ginny que essa possibilidade de fingir ser branca não seria viável para uma negra retinta. Eis a passabilidade do mestiço tão bem retratada numa cena.

A figura de Ginny, assim como a minha, se encaixaria bem no perfil da mulata, aquela imagem da negra que é mais aceitável para a televisão, o cinema e para o conjunto da branquitude. O cabelo não é black, mas cacheado. Alguns dos traços são brancos, a pele é mais clara. A "sensualidade" da mulher negra, inclusive. é mais voltada para esse fenótipo. Se tem o corpo magro, assim como tem a Ginny e eu também tinha na idade dela, vira o modelo perfeito para a sexualização da mulher negra.
"De um modo geral, a mulher negra é vista pela sociedade a partir de dois tipos de qualificação 'profissional': doméstica e mulata. (...) Sem se aperceberem [as mulatas] são manipuladas, não só como objetos sexuais mas como provas da 'democracia racial' brasileira; afinal, são tão bonitas e admiradas! Não se apercebem que constituem uma nova interpretação do velho ditado racista 'Preta pra cozinhar, mulata pra fornicar e branca pra casar'." (Lélia Gonzalez, em artigo do livro "Por um Feminismo Afro-latino-americano")

No Brasil de hoje, assim como nos Estados Unidos, já não é possível ler a questão racial sem admitir a passabilidade do negro de pele clara, que tem mesmo muito mais acessos. Só que esses acessos continuam tendo limites. A mucama mestiça que trabalhava na Casa Grande com certeza teve uma experiência de escravidão diferente da mulher negra que trabalhava fora da casa do senhor, E essa diferente experiência só se agudizou com o tempo, pois a estratégia da branquitude é querer ressaltar cada vez mais as diferenças entre os pretos e os pardos, enquanto continua a oprimir os dois.

A negra parda que alisa o cabelo e que fez rinoplastia por um nariz "afilado" está cada vez mais perto de alcançar se parecer com a raça privilegiada, embora jamais vá ser aceita totalmente como um dos de cima. Nas periferias ou nas classes médias, o movimento mais constante é nesse sentido: do pardo querer ser incluído entre os brancos.

Os números nos mostram que pardos são maioria nas penintenciárias e no número de assassinatos praticados pela polícia. Sendo assim, é fundamental que, para que consigamos derrotar o projeto racista, tenhamos unidade entre pretos e pardos como negros. Se o pardo para de querer entrar no hall da branquitude e começa a reconhecer a sua negritude, teremos muito mais chances contra o sistema.

Durante um tempo, assim como fez Ginny, eu quis tentar viver mais "facilmente", disfarçando um pouco minhas características negras. Nossa, como minha transição capilar revoltou alguns familiares, haha. Mas essa sou eu. E não pretendo mais me contentar com a minha passabilidade.

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