Sei quem sou


Sou filha de um negro e uma branca. Essa "palmitada" já dura 35 anos, tem mais dois filhos e até netos. Durará ainda muito mais, até onde a vida permitir, pois é a relação mais companheira e saudável que conheço. Sou fruto deste casamento, e, embora nos traços eu pareça minha mãe, a cor da pele, dos olhos e a cor e textura do cabelo nos distinguia. Na rua, ouvi muitos "que pena, não tem os olhos verdes da mãe"; "poxa, não saiu nenhum galeguinho". Acharam bem mais de uma vez que eu não era filha da minha mãe, mas sim uma das minhas primas brancas que às vezes nos acompanhavam. Era criança, mas prestava atenção e registrava.

Muitas vezes quis parecer mais com minha mãe do que com meu pai, mas a branca que me criou nunca deixou perdurar: "seus olhos castanhos são muito mais lindos que os meus"; seus cachos são maravilhosos, mais lindos que meu cabelo ralo"; sua cor é uma dádiva, pele mais linda"; "que lindos lábios fartos, filha, minha boca é tão murchinha". E eu voltava a me sentir linda.

Mais tarde, naquelas votações das mais bonitas da escola, embora magra e com o que chamam de "corpão", nem eu e nem nenhuma menina parecida comigo estava nas listas, e sempre entendi o porquê - para me proteger, meus pais me explicaram cedo o que era racismo. Já fui chamada de "camarão" - arranca a cabeça e come o resto. Quis ser punk e ouvi que era "mulata tipo exportação" e combinava mais com samba - como se rock também não fosse ritmo que veio dos negros! Nas escolas que estudei, era uma das poucas negras. Nas lojas, sabia por que o olhar do segurança preferia me seguir.

E ouvi o quase-perdão muitas vezes: "você não é tão negra quanto os outros negros, é mais clara, o nariz nem é tão largo". Mas a branquitude nunca me enxergou branca; por conta disso, eu nunca me enxerguei. Sei quem sou. Tenho total ciência de que, neste país, como negra da pele clara, tenho mais privilégios que um negro de pele escura (e isso me fez nunca solicitar cota racial em concursos, por exemplo, como já contei aqui nas redes). Mas não me auto-declaro negra só por vontade, e sim por que foi assim que o mundo sempre me enxergou.

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